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domingo, setembro 03, 2017

PARA UMA PESSOA AÍ 



Pessoas me deixam logo estafado

Eu gosto é de gato

Sou do aberto, não do fechado

Eu gosto é de mato



Falo “Ercati!” pro estragado

E pro que eu acho chato

Tô de pé, mas pareço sentado

(É porque não sou alto)



Desse mundo tão desgastado

Quero o próximo ato

Liberdade por todo lado

E um peixinho no prato!

sábado, novembro 26, 2016

O Que Faz Fidel Castro No Inferno? 

Pinta um paredón de cadáveres?
É devorado diariamente por três tigres felizes
E muitos mais?
Quantas dissidências tolera
O Satanás?
O Partido
O é em quantas partes?
Implora que as torturas
Lhe sejam racionadas?
Ou apenas se afoga eternamente tentando cruzar
Estreito mar
De pneus de sangue?

terça-feira, novembro 06, 2012

QUE SUBÚRBIO É ESSE? (UMA HOMENAGEM AO CACHAMBI) 





Eu moro no subúrbio carioca há 26 anos. Eu não moro no subúrbio carioca há 26 anos. Eu tenho 26 anos.

Cachambi. Fustigados mais uma vez e sem misericórdia pela mesma imprensa que encomenda e divulga diligentemente suas pesquisas a cada nova eleição, nossos distintos institutos de opinião bem poderiam desistir das justificativas e enveredar por searas mais prosaicas – por exemplo, perguntar aos ilustres moradores da capital nacional da rede globo quantos já ouviram falar em (“no” talvez fosse dica demais) Cachambi.Chuto, no bom espírito dos institutos, afirmando categoricamente que teríamos algo entre 10% de “um bairro aí”, 40% “não sabe”, 40% “uma água mineral” e 10% preferindo não opinar (100% desses morando orgulhosamente no Cachambi). Incluindo singela margem de erro de 87% e detalhando mais o inquérito, teríamos cerca de uns 100 mil cariocas identificando a coisa como bairro – sim, é isso, um bairro - e talvez 30 mil deles estabelecendo corretamente o lugar como parte da Zona Norte da cidade.

Boboquices à parte, o parágrafo anterior tem muito de realidade. A confusão com a água (para quem não identificou, falamos da Caxambu, referência à cidade mineira) já foi cometida por pelo menos três interlocutores nos meus aludidos 26 anos, em todos os casos sem qualquer sinal de ironia minimamente perceptível. O Catumbi – sim, outro bairro – também já foi mencionado como alternativa correta à minha aparentemente crônica dificuldade de me fazer entender pelo ouvinte interessado (?). Houve momentos em que até eu, talvez em wishful thinking comum aos 100% que prefeririam não responder, me perguntei, em meio às interrogações do conhecido/colega/amigo, se de fato existiriam aquelas ruas da minha infância – ou se Cachambi era apenas tumor ou avitaminose qualquer (explicaria muita coisa, certamente). Mas não: Cachambi existe – e eu moro nele há 26 anos, ou seja, moro no subúrbio carioca há 26 anos. Ou será que não?

O subúrbio está tão na moda que a frase “o subúrbio está tão na moda” já deve estar na moda ela própria. Teatro, cinema, televisão – o subúrbio tem aparecido tanto que até espaço para suburbanos falarem de si próprios já está aparecendo também. Só nas organizações globo, e só nos últimos dias de outubro e no corrente novembro, a região deu as suas caras sorridentes, sofridas e gritantes várias vezes: duas no jornal (“Coração Suburbano”, capa do Segundo Caderno do dia 25 último, e “Complexo Urbano”, capa do Prosa e Verso de dois dias depois) e inúmeras outras em novela das nove, praticamente fazendo do suburbano o novo gay de reality show (novela sem suburbano ainda vira crime um dia, demonstração cruel e desalmada de suburbiofobia). Mas... Que subúrbio é esse, afinal?

A resposta nem tão polêmica assim é essa: o subúrbio deles é uma farsa. A resposta mais razoável e menos apaixonada, que demanda alguma demonstração a sério e pela qual optarei, é ligeiramente diferente: o subúrbio deles é uma mistura de reducionismo, anacronismo e paternalismo, ismos todos embebidos, novidade nenhuma, no esquerdismo genérico das nossas classes pensantes. (Pra fechar mais um parágrafo com pergunta:) Querem ver?

Os subúrbios noveleiros são todos muito parecidos: são cheios de gente mais ou menos vestida, mais ou menos alfabetizada e mais ou menos escandalosa – e bem pra mais do que pra menos gregária, especialmente em torno de qualquer carne queimando ou em mutirão da solidariedade pra ajudar o vizinho amigo. As casas simples (“simples” é o adjetivo por excelência aqui, com seu misto de condescendência e desprezo, solidariedade e hierarquização) continuam lá, com seus eternos quintais e imaculadas pela violência - só na novela casa simples de suburbano ainda não tem caco de vidro, cerca medonha, muro enorme, plaquinha de cão bravo e outras singelezas que tais. A demarcação, como de resto tudo nas novelas, apesar das sutilezas e complexidades recentes, permanece clara: você precisa de dois minutos ou uma cena para saber que personagem é suburbano e qual não é – mesmo os suburbanos afluentes, e talvez especialmente esses, carregam seus vícios de origem: erros de português aqui e ali, música alta, gritos e mais gritos. O subúrbio é um grande cartoon pobre, mas via de regra feliz – não raro em oposição a ricos atormentados, com famílias dilaceradas e enormes tristezas e mentiras por trás de montanhas de dinheiro e afundadas em piscinas do tamanho dos subúrbios alegres.

E o que nos dizem os jornais? As duas matérias citadas prometem, cada qual a sua maneira, exatamente uma desconstrução dessas e de outras simplificações. No Segundo Caderno, somos informados de uma leva de filmes – realizados, em realização ou apenas planejados – que trariam um subúrbio “poético e além dos clichês”, não raro pelas mãos de cineastas “nascidos e criados no subúrbio”. Dentre estas produções, vejam vocês a revolução, temos “"Claun" (corruptela de clown, palhaço), longa-metragem inspirado no universo dos bate-bolas, tradicionais figuras do carnaval das zonas Norte e Oeste”; “1994”, “um drama de época situado entre Brás de Pina - cenário também de "A distração de Ivan" - e a Penha, que tem como pano de fundo as lutas entre as torcidas organizadas de times de futebol” e, por último e sem dúvida mais importante, toda a quebra impressionante de clichês trazida pelo infelizmente ainda não concretizado “"Subúrbio", um “drama recheado de hip-hop, samba, skate, evangélicos e folia de reis” que com certeza vai dar o que falar. Resumindo: a esperança de um subúrbio “para além dos clichês” (nem discuto o poético) residiria em bate-bolas, brigas de torcidas, hip-hop, samba e evangélicos – algo como retratar uma zona sul para além dos clichês com Corcovado, Pão de Açúcar, praia de Copacabana e turista branquelo com bermuda esquisita e câmera prestes a ser roubada. Agora vai, né?

Mas e o Prosa e Verso, Felipe? Mais intelectualizado, o caderno não traria soluções melhores? Bem, ele traz antropóloga falando que o subúrbio “se criou com a força da vizinhança”, jornalista afirmando que “a imagem de subúrbio decadente vem sofrendo mudanças nos últimos anos com o aumento da classe C” e antropóloga retornando para nos ensinar que “a sociabilidade foi gerada pelos negros expulsos de cortiços do Centro, ex-escravos, pessoas que já trabalhavam juntas no Porto, frequentavam as mesmas rodas de samba, os mesmos terreiros”.

Moro no subúrbio há 26 anos. Ou, a considerar nossas novelas, nosso principal jornal, nosso teatro cômico (peça Os Suburbanos: “Seis interessantes esquetes compõem o espetáculo, que retrata a realidade suburbana carioca. Pagode e humor são as homenagens à periferia, que com um sorriso no rosto e o peito aberto enfrenta as mazelas do cotidiano”) e nossa televisão (em Suburbia, que estreou cheia de elogios, dançarina de funk é das principais personagens), não moro. O Cachambi nunca me pareceu decadente – ao contrário, só prospera desde que nasci, e desde muito antes da recente e aclamada ascensão da classe C. Se o Cachambi tem uma escola de samba, ela está longe das maiores e melhores, eu nunca soube da existência da digníssima e tal ignorância jamais fez diferença para mim – ou para qualquer dos meus amigos e coleguinhas de infância e começo de adolescência, quando efetivamente passei a socializar com mais pessoas de outros bairros. Aliás, dos cachambienses que conheci de perto, a maioria é hostil ou indiferente ao samba – e o mesmo vale para o funk. Também nunca se vestiram de clóvis. Não integram torcidas organizadas. São brancos – vários portugueses, espanhóis, italianos e seus descendentes - e nunca foram a terreiros (os pardos e negros, minoria absoluta no condomínio de sempre e na minha antiga escolinha particular, não eram/são de religião afro-brasileira também). Falam direitinho e às vezes, vejam vocês, até em tom de voz razoavelmente baixo. Têm planos de saúde particulares. Cursaram ou cursam faculdades (em alguns casos, como o meu, faculdades públicas, e até sem recorrerem às cotas recentes). Diversos moram, olha que assustador, em prédios – prédios com porteiro 24 horas, garagem, piscina, salão de festas, churrasqueira, parquinho e afins, instalações mais do que comuns no Cachambi. Nem todo mundo ou anda nu ou é evangélico – há variantes várias nesse meio aí. Lêem livros, e não só best-sellers. Alguns se assumem direitistas e esquerdistas – e por efetivamente estudarem, em diferentes graus, as doutrinas políticas dos dois campos. O funcionalismo público está bem representado, principalmente por professores (concursados, lembremos). E assim vai...

E é esse o subúrbio das matérias em O Globo? Da novela? De Suburbia? Da peça Os Suburbanos? Não: sempre se seleciona o subúrbio mais pobre, mais pitoresco, mais antagônico à Zona Sul – e mais longínquo, geográfica e historicamente falando, mais em via de extinção. Sim, há diferenças enormes entre o Grande Méier (com suas várias redes de escolas particulares, sua Cultura Inglesa, sua Aliança Francesa, a Body Tech – essas três últimas no segundo shopping em extensão da cidade, o Norte Shopping, que afirma ainda ter “o mais moderno equipamento para boliches do mundo” -, o Hospital Pasteur, um belo jardim público) e Sepetiba, com seus montes de casinhas em permanente construção, trocentas igrejas evangélicas em cada esquina, nenhum bom hospital particular ou público e a uma hora de um complexo de entretenimento minimamente digno do nome. Há diferenças entre as posses e a escolaridade média das respectivas populações. E se há... Por que não mostrá-las? Por que optar sempre pelo mais caricato, pelo que fará o formador de opinião mais abastado dar sorrisinho e exclamar “ah, esses suburbanos!”, como se fossemos todos dos mais humildes passageiros do trem do Zorra Total?

Esse texto não visa, porém, separar um bom subúrbio de um subúrbio ruim. É óbvio que, em linhas gerais, prefiro o Cachambi a Sepetiba – como prefiro Botafogo ao Cachambi. O ponto é outro: o subúrbio que estão vendendo pra você, caro leitor, é na melhor das hipóteses parcial. É mixórdia de cadeiras na calçada que somem a cada dia (como reconhecem Paulo Lins na matéria do Prosa e, de certa forma, Cacá Diegues na matéria do Segundo Caderno) com caricaturas. É só, em suma, mais uma versão do velho pobrismo da nossa esquerda – que só se sustenta, obviamente, eliminando todo o subúrbio que prosperou e prospera (e estudou e estuda) há muitas décadas. Que tal voltarmos um pouquinho o olhar para esses lados de cá – que não são poucos?

Citando de cabeça um blogueiro muito melhor que eu, que por sua vez deve ter parafraseado o Joãozinho Trinta - “Eu não gosto de pobre. Quem gosta de pobre é a esquerda – eu quero que os pobres ganhem dinheiro e deixem de ser pobres” -, digo que eu quero um subúrbio rico – o que o rico que vive de vender um subúrbio pobre claramente não vai querer.
Felipe Svaluto Paúl

terça-feira, março 30, 2010

EM GUARDA CONTRA O PERIGO AMARELINHO

Quando o blog do Prosa e Verso me informou que a edição desse sábado do famoso suplemento literário de O GLOBO traria um texto analisando uma suposta recorrência de teorias sobre ameaças comunistas na história do Brasil, fiquei interessado: seria a resenha de um novo lançamento editorial? Uma tese acadêmica? Até onde retrocederia – ou até onde avançaria, quem sabe século XXI adentro, talvez um estudo (sério, de repente?) daquilo que a Caros Amigos chamou de nova direita brasileira? Veria eu Olavo de Carvalho ali, como referência – ressurgindo na grande imprensa não como colunista mais ou menos maldito, mas como objeto de pesquisa? Curioso, na mesma hora abri outra aba do navegador e joguei a autora – também informação do blog – no Google: Thamy Pogrebinschi, IUPERJ, jovem, artigos e livros vários sobre marxismo e pragmatismo; no combalido Instituto, um curso de Teoria Política Contemporânea com espaço, acreditem, para o libertarianismo: Nozick e, me perdoem os puristas, Hayek e Friedman pai presentes na bibliografia sob a rubrica libertária, com livros inteiros mencionados. Bons sinais? Sem dúvida: ainda que não necessariamente trabalhadas na íntegra – títulos demais citados para um único semestre -, essas obras valeriam apenas por estarem ali, por aparecerem inusitadamente diante de pós-graduandos que de repente se deparavam pela primeira vez (seria muito provavelmente o caso de alguém formado em História pela UFF, por exemplo) com o nome de Robert Nozick em suas vidas. Assim, Pogrebinschi surgia para mim aí como alguém dotada de honestidade intelectual e espírito docente, uma professora e pesquisadora capaz de, simpatias marxistas – até então apenas presumidas – à parte, investigar e debater em sala de aula uma doutrina (ainda que restrita principalmente às suas raízes “neoliberais” – Hayek e Friedman - mais conhecidas e, como aludido acima, menos bem quistas pelos puristas da causa) que sem dúvida não recebe na Academia sequer parcela minimamente razoável da atenção devida para além da sua área originária, a Economia; e foi então animado com essa perspectiva de ler uma provável esquerdista honesta e letrada em pensadores liberais tratando do anticomunismo pátrio que eu acordei anteontem[texto concluído ontem] e comecei o jornal exatamente pela singularidade que interessava – o logo encontrado ensaio “O ‘perigo vermelho’”, filho único da página 5 do último Prosa desse março de 2010.

Já de início, em peça bem estruturada, temos a motivação imediata para as reflexões que seguem: Thamy escreve a partir de uma fala – mais especificamente, o trecho de uma entrevista na qual o Ministro Marco Aurélio de Mello, STF, leu a ditadura militar brasileira como um “mal necessário” diante da perspectiva de um mal maior, a possibilidade de um autoritarismo comunista se instalar por aqui na rabeira de Goulart e da crise pré-golpe. Tese antiga, já esposada nesse blog e, como lembra a articulista, justificativa da própria ação militar golpista, a afirmação leva Pogrebinschi a um caminho que percorrerá Marx, Hegel, o PNDH-3 e a conceituação de “sociedade civil” para resultar na sugestão de que, hoje como ontem – como sempre? -, o temor de um Brasil comunista se confundiria ilusoriamente, por desinformação, com o que é mera ampliação da soberania popular, meras perspectivas (frustradas, no caso de 64) de aprofundamento democrático. Estando nós mesmos – eu e, imagino, boa parte dos meus parcos leitores – entre esses iludidos, acho que convém acompanharmos mais de perto a reflexão da docente, pontuando algumas coisas que me pareceram particularmente relevantes e divagando um pouquinho sobre as teorias levantadas também.

Inicialmente, importa perceber que não há no texto sob análise qualquer tentativa de provar empiricamente a inexistência de uma ameaça comunista real nos idos do Janguismo: é dado de barato que ela não existia, que apenas se associou – por ilusão ideológica ou oportunismo – comunismo a algo a princípio diverso, a tal “sociedade civil” já mencionada; mais adiante veremos o que seria essa sociedade civil e os lugares ocupados por ela e pelo comunismo no rascunho da professora. Por ora, fica a pergunta: apesar de inserido em artigo inequivocamente enxuto, limitado pelos ditames do jornal, não pedia argumento desses – ao menos se pretende realmente algo que não o consumo interno, o aplauso dos pares políticos – uma fundamentação histórica mínima? Quando na graduação, não era raro ouvirmos críticas ao que seria a falta de historicidade em parte das ciências sociais, incluindo estudos da ciência política a qual se dedica Pogrebinschi: muito interessados em grandes planos e em comparações entre diferentes momentos históricos – como teremos aqui, aliás, em breve chegamos lá -, os estudiosos dessas disciplinas não raro perderiam o particular de cada caso, as singularidades de diferentes episódios. Confrontada com essas especificidades, como se sairia a professora? No que me é possível afirmar, a vejo responder apenas com a alegação de “futurologia” àqueles que, como Marco Aurélio, enxergam em retrospectiva ou enxergavam na ocasião a possibilidade real do Brasil caminhar para o comunismo naquele início de anos sessenta. Cuba socialista, patrícios nossos passando por treinamento militar na ilha (“O Apoio de Cuba à Luta Armada no Brasil”, Denise Rollemberg, que Thamy certamente não ignora), a crença generalizada em boa parte da esquerda nativa de que a luta armada era sim um caminho revolucionário justo e viável – e o posterior engajamento de vários desses sujeitos em combate nas sombras que, como lembra um ou outro mais honesto (Aarão, Palmeira), não tinha interesse algum em substituir a ditadura por uma democracia classista, burguesa, mas sim instaurar exatamente um novo regime socialista nos trópicos, para muitos inspirado nos humanismos da revolução castrista ou na sabedoria marxista do camarada Mao... Nada disso é confrontado; no texto, parece que a precavida sentença “teríamos que esperar para ver, e foi melhor não esperar” do Ministro Marco Aurélio se assenta sobre nuvens, é floreio contra inimigo etéreo que jamais existiu como força significativa, não passando – a palavra escapa ao ensaio, não é das mais acadêmicas fora das ciências da mente – de paranóia das elites empresariais e suas senhoras católicas, da classe média reacionária e da doutrinação castrense.

Em seguida, fugindo a esse confronto de fatos e versões, temos o referido salto rumo ao contemporâneo, ao famigerado PNDH-3: para Pogrebinschi, a oposição a esse projeto evidenciaria, além das recusas pontuais de uma ou outra proposta, um recrudescimento genérico dessa preocupação que confunde democracia extrema com ditadura vermelha. Para sustentar que também essa contemporaneidade anticomuna sofre da terrível ilusão, a pesquisadora recorrerá a Hegel e Marx e nos informará que “sociedade civil”, para esses pensadores, era algo diferente do Estado, do poder propriamente político – seria uma instância social própria, ainda que ligada ao estatal por “uma relação de oposição”, dialética; a partir daí, retornará aos clássicos – à democracia grega, mais especificamente – para pensar a possibilidade de uma sociedade civil diferente, mais integrada ao poder, participativa, remetendo a uma origem na qual supostamente “não se fazia distinção entre Estado e sociedade civil como duas esferas separadas, tampouco antagônicas”. Seguindo o raciocínio, o polêmico plano de direitos humanos apresentado pelo lulismo às vésperas da eleição presidencial seria apenas um fruto meritório de processo absolutamente democrático – mais ainda, fruto de uma forma de democracia mais direta, resultado que é de encontros entre a referida sociedade civil (através de ONGs e associações de toda sorte) e as autoridades estatais, num processo de deliberações e debates diverso – e, supõe-se, mais legítimo, na medida em que aproxima as instâncias antes afastadas e nos assemelha a uma democracia clássica originária, idealizada ou não - daquele tradicionalmente realizado pelos representantes eleitos a cada quatro anos pelo povo. No caminho, e isso é sem dúvida interessante para a autora, ainda correríamos – agora democratíssimos – o risco de enveredarmos por um... comunismo! – mas não aquele de Stalin ou Pol Pot que, imagino, não é reconhecido como tal pela professora, mas sim um marxismo que seria originalmente de uma democracia só, identificado exatamente com a superação da dicotomia entre Estado e sociedade civil que o onguismo para-estatal parece contribuir para gestar em terras tupiniquins.

Não cabe nesse espaço – o tamanho do post é ilimitado; a paciência do leitor(?), não – nos aventurarmos por uma discussão acerca do marxismo de Marx, suas credenciais supostamente libertárias e os terríveis descaminhos da História que teriam feito, vejam vocês que coisa insólita, absolutamente todos os experimentos de engenharia social vultosos que se pretenderam inspirados no velho semita alemão resultarem coincidente e atrozmente em algumas das piores e mais sanguinárias ditaduras que a humanidade já experimentou; ao contrário, deixaremos a teoria de lado e nos limitaremos, replicando expediente anterior, a analisar o sempre desagradável fato – esse inimigo ancestral dos teoréticos todos – para conferirmos se realmente o PNDH-3 poderia ser adjetivado como “democrático” que não torturando o próprio sentido moderno da palavra, travestindo de alguma democracia adjetivada (“popular”, quem sabe?) o que é apenas autoritarismo – é isso ou precisaríamos assumir - e lidar com esse dado, o que seria ainda mais desagradável para a teoria -, pelo menos, que um processo deliberatório imerso em democracia teria gestado excepcionalmente um documento pautado pelo cerceamento das liberdades mais elementares de um ser humano...

“102. Garantir a possibilidade de fiscalização da programação das emissoras de rádio e televisão, com vistas a assegurar o controle social sobre os meios de comunicação e a penalizar, na forma da lei, as empresas de telecomunicação que veicularem programação ou publicidade atentatória aos direitos humanos.” “

“104. Propor legislação visando a coibir o uso da Internet para incentivar práticas de violação dos direitos humanos.”

“105. Garantir a imparcialidade, o contraditório e o direito de resposta na veiculação de informações, de modo a assegurar a todos os cidadãos o direito de informar e ser informado.”

Acima, três pontos do Programa – todos tratando de um mesmo assunto, o “controle social sobre os meios de comunicação”, fetiche número um daqueles revoltados com a onipresença da mídia “capitalista” e o eficiente trabalho ideológico (no vocabulário mais rasteiro, “alienante”) por ela cumprido para a manutenção da exploração do homem pelo homem em nossas terras. Responder a essas tão nobres intenções é sempre cansativo, mas vamos lá: quem definirá o que é ou não “atentatório aos direitos humanos” em uma programação de TV – ou na internet, digamos, nesse ou em outro blog? Quem estabelecerá o direito ao contraditório em uma reportagem do Jornal Nacional sobre, digamos, os Sem-Terra – exemplo comum em discussões do gênero, valentes do campesinato sempre satanizados pela Globo reacionária? Quem ficará responsável pela analisar a publicidade? A resposta está na própria professora Thamy e nos demais militantes do amanhã florescente: a “sociedade civil” – via conselhos, conferências, congressos. Deixemos de lado o crime óbvio – que essa sociedade civil promoveria uma censura, sem tirar nem pôr, impedindo com a força do Estado a veiculação (mesmo na Internet! Se cuida, youtube!) de certos programas ou propagandas – e fiquemos – para quem não considera cada um dizer o que bem entende como um direito inalienável – na simples funcionalidade da coisa: não parece claro que esse controle nada mais fará que consagrar uma – ou algumas – visões sobre “direitos humanos”? Que o atentatório para um não é atentatório para outro? Não é preciso sequer remetermos a passado ancestral ou evento obscuro para percebermos o perigo – na verdade, percebermos o descalabro mesmo hoje, quando o conselho ainda falta: há talvez apenas um mês o CONAR (órgão autônomo de autoregulamentação publicitária) retirou do ar propaganda de cerveja com Paris Hilton por supostamente associar o consumo de álcool a sexo – algo que, como sabemos, é absolutamente inédito em nossa pudica publicidade; na verdade, como logo veio à tona, a ação foi motivada por uma ameaça de intervenção contra o comercial por parte da Secretaria das Mulheres, órgão do governo Lula. Por que uma secretaria de defesa da mulher se envolveria no caso? Ora, também é birra antiga das feministas que a mulher na propaganda brasileira seria constantemente pouco mais que um objeto sexual – mais ainda em determinados nichos dessa publicidade, etílicos entre eles; sem negar a razoabilidade dessa afirmação, pergunto: é realmente isso que queremos – já que deixei por ora de lado o direito absolutamente natural à palavra, fiquemos com o pragmatismo – para nossa sociedade – um grupo de pessoas (maior ou menor, nem discorrerei sobre a miudeza da militância organizada e suas ONGs diante da imensa “sociedade civil” brasileira) decidindo por você o que passará na sua televisão, decidindo por você – por cada um de vocês, por cada brasileiro – o que é ou não atentatório aos direitos humanos? Caso uma mulher considere a Paris de quatro na sua TV uma indecência ou desvalorização medonha do feminino, pode mudar de canal – pode desligar a TV, boicotar a cerveja, se organizar com mulheres afins (e homens!) e ampliar esse boicote a um nível bastante significativo... O que ela não pode é, por se considerar mais consciente, politizada, se incorporar a um conselho qualquer e impedir, sob a ameaça do tacão estatal, que a Mariazinha vizinha – ignara, coitada, que acha o comercial até engraçadinho – seja impedida de assistir a Paris rebolativa. E é exatamente esse o tom do esquerdismo responsável pelo PNDH-3: misturando enfrentamento sem tréguas a um modelo econômico opressor e seus aparelhos culturais e uma boa dose de intelectualismo e vanguardismo demofóbico, o que eles querem é proteger o brasileiro de si mesmo: você não sabe o que é bom para si, mas eles sabem – deixado à própria sorte, passará a vida sendo anestesiado por entretenimento barato na televisão, submetido a sabe-se lá quantas violações da sua dignidade “enquanto ser humano” – ou enquanto negro, mulher, criança, vovô... Felizmente, eles estão aí para te proteger – ainda que você não tenha eleito qualquer dos galantes para conselho algum...

A professora Thamy, além de escrever bem – vícios de ofício à parte, nem sou acadêmico e também tenho os meus -, certamente não é pessoa sem cultura: tivesse lido apenas o que cita nas bibliografias de seus cursos e já seria uma grande conhecedora de teoria política, liberalismo do século XX inclusive – e certamente leu muito mais, dada a produção intelectual que assina; por conta disso, ela certamente sabe bem que sociedade mobilizada e politicamente participativa não é de forma alguma garantia de democracia – sequer a formal, indireta, burguesa, quanto mais qualquer quimera superior a isso que possamos imaginar. Ao contrário, teóricos – olha só, eu falando de teoria agora – do totalitarismo consideram exatamente que uma sociedade constantemente mobilizada (e organizada exatamente em incontáveis associações – de classes, gênero, idade) foi elemento característico fundamental tanto do nazismo quanto do stalinismo – sendo objetivo último de um regime totalitário nada mais nada menos que a própria indistinção entre Estado e sociedade civil de que nos fala – com tantas boas promessas – a professora, a politização extrema e controlada de todos os espaços ( incluindo artes, religião, mesmo relações familiares) da vida social. Não quero com isso soar fatalista e insinuar que a multiplicação dos Conselhos todos de Pogrebinschi pelo Brasil nos levariam inevitavelmente ao totalitarismo – ou mesmo a uma variante moderna de fascismo; quero apenas indicar que, se milhões de alemães mobilizadíssimos não tornavam justa a censura a qualquer filme ou livro sob o Reich de mil anos, também nenhum grupo mobilizadíssimo de brasileiros (sejam os atuais gatos-pingados das ONGs ou, digamos, 100 milhões de vozes censoras) não tornarão justo que qualquer concidadão seja impedido pelo Estado de veicular o que bem entender pelo meio que achar mais conveniente.

Professora Pogrebinschi, termino com uma sugestão para suas reflexões políticas, se me permite: retorne aos libertários e perceba que não seremos mais livres ou prósperos quanto mais pessoas ou instâncias tivermos que decidam a respeito do que as outras pessoas podem ou não fazer – mas sim diminuindo ao máximo possível o número de situações em que essas decisões se façam necessárias.

Felipe Svaluto Paúl

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quinta-feira, fevereiro 18, 2010

SERVIDÃO VOLUNTÁRIA

Rainer Wenger, que mais tarde descobriríamos professor de Educação Física e Ciências Sociais, está animado com a perspectiva de ministrar um projeto - espécie de curso paralelo à grade comum, até onde se pode compreender - sobre anarquismo na escola secundária alemã onde já treina (também entusiasticamente) o time de pólo aquático local. Homem de esquerda, fã de rock e adepto de visual um tanto menos professoral que o comum entre seus pares docentes, Wenger é cumprimentado com aparente sinceridade por diversos alunos quando chega ao colégio e se prepara para discutir a desejada disciplina de verão com a diretora da instituição - apenas para descobrir que um outro professor, conservador à caricatura, já havia se antecipado e escolhido ensinar as ideias e movimentos anarquistas aos jovens do lugar. Chateado, o treinador e cientista social acaba abraçando um outro projeto, também dentro da área política - e sob a atenção da esposa grávida, também professora da escola, começará a bolar alguma forma interessante de ensinar a seus pupilos o que entendia como característico de uma rubrica bastante abrangente na área dos conceitos e sistemas de governo: a autocracia.

Assim começa A Onda(Die Welle), filme alemão de 2008 que enfim assisti na semana passada. A partir do ponto onde paramos, o que o espectador vê a seguir pode ser descrito como o curto ciclo vital - não chega a uma semana - de um movimento estudantil vagamente fascista: testemunhamos seu nascimento, seguimos o desenvolvimento impressionante que alcança em dias e nos surpreendemos com a morte abrupta e violenta que põe fim a uma ascendente em dado momento aparentemente irreversível. Comum a essas três fases, ainda que diversos em cada um deles, temos não apenas os adolescentes, entusiastas e massa formadora da organização, mas também e principalmente Wenger: longe de ser uma iniciativa juvenil de garotos e garotas subitamente apaixonados por formas autocráticas de governo, A Onda - como o grupo é nomeado - é inicialmente apenas um experimento didático concebido e conduzido pelo professor Rainer, que pretende com a iniciativa apresentar aos colegiais que orienta uma experiência da autocracia para muito além dos livros e de aulas expositivas - como aquelas, aparentemente chatíssimas, que logo veremos de esguelha o professor conservador ministrar a seus alunos no projeto sobre anarquia.

A Onda começa como disciplina, ordem, mesmo auto-ajuda - levantar quando quer dizer algo durante a aula, esperar o colega terminar para completar ou replicar o que foi falado, chamar o outrora professor camarada (e agora líder) de senhor, manter postura decente na carteira e até respirar corretamente, para melhorar a concentração: no princípio reticentes ou debochados, as cobaias de Wenger - com a exceção de três dissidentes, um dos quais acabaria voltando atrás rapidamente - logo se veem seguindo conscientemente as ordens do professor - e elaborando eles próprios novos regulamentos e características para o agrupamento, num crescente de participação que só faz alimentar no Guia que servem a certeza de que a experiência funciona e que ao término do projeto seus alunos entenderão realmente o que é viver uma legítima experiência autocrática.

Mas a criatura, tipicamente, logo escaparia ao controle do criador: contaminados pela dominação carismática e inflamados por um senso de pertencimento que muitos ali - Tim, jovem sem amigos e com pai ausente, como símbolo maior do caso - jamais haviam experimentado, os militantes da Onda decidirão que os muros da escola representam limite inaceitável para a força do que sentiam e vão organizar, à revelia do próprio Sr.Wenger, uma espetacular ação para dar conta à cidade do ente que orgulhosamente formam. A partir desse e de outros incidentes, o filme escalará em violência até o final em que, já algo desesperado, um Fuhrer arrependido enfim abandonará a vaidade que o consumia e tentará, num último e drástico ato, terminar a tragédia que começara - o que acabará por conseguir, não sem pelo menos uma terrível consequência.

Como estudo sobre o totalitarismo, o filme é um exemplar razoável: inseguranças e peculiaridades particulares aparecem bem como combustíveis subjacentes ao interesse de alguns estudantes pelo grupo, toque mais íntimo a lembrar como um coletivo pode atrair exatamente por dissolver e ignorar nossos demônios de todo dia; a exclusão do outro, do estranho que até ontem era amigo, aparece bem também, com sutileza e agressividade se alternando como mecanismos de rejeição - ainda que a última, opção igualmente acertada, cresça conforme se expande A Onda e aumentam os poderes reais e aparentes do grupo; a servidão como uma escolha - Lisa, personagem que está entre os menos abastados do colégio, lembra não por acaso que o uniforme suprime a escolha das roupas pela manhã, adaptando a padronização exigida a demanda pessoal sua - me lembrou O Fenômeno Totalitário, do finado liberal uspiano Roque Spencer Maciel de Barros, no qual o totalitarismo aparece como uma opção por não ter opção; a vandalização ou destruição de símbolos religiosos e capitalistas, percepção especialmente inteligente de que tanto capitalismo quanto religião são, em última instância, concorrentes do totalitarismo - ou eventualmente totalitarismos concorrentes, como no caso do fundamentalismo islâmico -, por mais que possam se submeter ou mesmo se associar momentaneamente a ele em determinados contextos históricos; o indivíduo como inimigo máximo do totalitarismo, mesmo quando mal há objeção estritamente política, apenas um desafio aparentemente banal à autoridade - a jovem Karo se recusando a usar o uniforme porque não fica bem de branco...

Apesar de toda essa compreensão bastante correta - e mesmo instigante, em alguns momentos - de muitas das características de um movimento (se não de um regime) totalitário, senti falta enorme de elemento fundamental para qualquer totalitarismo: a ideologia. Talvez seguindo interpretação bastante corrente que menospreza a importância do discurso - seria mero irracionalismo de ocasião - para nazismo e fascismos, o filme e Wenger não se preocupam em absoluto na conformação de uma doutrina mínima para embasar a união da Onda, qualquer coisa para além da camaradagem e do ardor: só no fim da película, já pretendendo desbaratar o que criou, veremos o professor ensaiando uma crítica econômica ao capitalismo e insuflando certo nacionalismo imediato em seus estudantes, que o apoiarão animadamente - provavelmente uma tentativa do filme insinuar, seguindo a linha citada, que o conteúdo retórico importa realmente pouco para o totalitarismo, desde que já haja militantes devidamente mobilizados pela mera força da mobilização em si...

De toda forma, A Onda vale o tempo que se gasta a assisti-lo: é uma defesa da individualidade bastante informada e inteligente, coisa que não é exatamente corriqueira em qualquer cinema do mundo.

Felipe Svaluto Paúl (Pois é, vivo ainda...)

PS: Ao contrário desse blog bissexto aqui, tenho já há certo tempo outro no qual posto com mais frequência - o que não significa que seja frequente por lá, também: no Libertad Matters, o leitor do Warfare State poderá encontrar curtos posts meus - e de alguns poucos amigos, todos ainda mais eventuais que eu - noticiando basicamente ações e ameaças contra a liberdade ao redor do mundo, Brasil inclusive - e eventualmente também alguma coisa mais tipicamente histórica, resenha ou ensaio recuperando passagem importante da luta pela liberdade em tempos idos.

A quem quiser realmente acompanhar esse ou aquele, a dica - sem dúvida algo narcisista, mas bastante prática também: torne-se seguidor do blog que te apetecer, de preferência ambos; você será informado (é só abrir a conta no blogger) de qualquer atualização que excepcionalmente surja aqui ou lá...

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sábado, fevereiro 02, 2008

O COMENTÁRIO QUE JOAQUIM FERREIRA DOS SANTOS NÃO PUBLICOU - OU: "O JORNALISTA É ALGUÉM QUE SAI DA FACULDADE SEM SABER FALAR SOBRE NADA, MAS QUE TRABALHARÁ FALANDO SOBRE TUDO"

Em meio à atual crise na polícia fluminense, o que segue seria inequivocamente uma bobagem, uma perfumaria, quase um luxo. Em momento no qual tanto se joga e se decide, cada caracter digitado aqui ou em qualquer outro blog, site ou editor de texto deveria ser precedido de uma reflexão fundamental: o tópico que proponho é mais urgente que a discussão já existente? Toda frivolidade, toda picuinha, toda crônica de costumes deveria ficar em suspenso, esperando o desenlace da coisa - ao menos no Rio de Janeiro, para não dar também ao caso proporções de recessão americana. Mas o fato objetivo é que não fica; apesar de tudo - e a referida crise é apenas a parte mais evidente e atualmente mais midiática desse todo -, a sociedade insiste em manter o passo, insiste na crença de que tudo segue, insiste na crença de que, afinal, é Carnaval. O lado negativo dessa alienação é óbvio e transparece com maior clareza a cada eleição, a cada estatística referente a nossos indicadores sociais - embora possa também ser percebido sem dificuldades no dia a dia, nas relações pessoais mais distantes da frieza dos números. Mas há também um lado positivo na coisa: essa inércia impede ao mesmo tempo a revolução e a anomia, a mudança e a desistência. Fosse talvez mais consciente em relação aos grandes temas nacionais, nossa população poderia tanto irromper em uma fúria súbita - e provavelmente sanguinária - quanto se entregar absolutamente, abandonar a vida cotidiana que é, afinal, a vida. Para o mal e para o bem, seguimos: seguimos com Big Brother, com a domingueira televisiva, com o futebol - e estamos tão errados quanto certos nisso. O fato objetivo, porém, é que seguimos. E é por isso que também seguimos - eu inclusive - com Joaquim Ferreira dos Santos, o cronista da frivolidade em O GLOBO.
Joaquim Ferreira dos Santos, para quem não conhece, é o responsável último pela coluna "Gente Boa", publicada de domingo a domingo no Segundo Caderno - além de autor de uma outra coluna na última página desse suplemento, acredito eu que às quartas-feiras, talvez às quintas. Escritor razoável - o que se depreende mais dessa coluna semanal do que da coluna diária -, Joaquim se dedica fundamentalmente a dois temas: a crônica de um Rio que passou - exercitada fundamentalmente na coluna semanal - e a leve ironia em relação ao mundo das celebridades instantâneas, tema que tem no próprio O GLOBO outro e mais explícito representante, o colunista Artur Xexéo. Nesse último exercício, Joaquim parece querer conferir uma gravidade à futilidade, tentativa sempre complicada. Ele, assim como Xexéo, parece querer denunciar exatamente "o ponto a que chegamos", quando a fama decorrente de algum feito distintivo se torna a fama pela fama, o sujeito é famoso meramente por ser, por ter aparecido nesse ou naquele programa de tv, fundamentalmente, na maioria das vezes fazendo algo bizarro ou absolutamente sem sentido - como é o caso dos intermináveis dias de conversa estúpida no Big Brother, talvez o título de atração televisiva na história que mais vilipendia a sua referência original, em última instância o excelente 1984 de George Orwell. Nessa função, Joaquim é também bastante razoável - até por não ser trabalho que exige muito, tantas são as notícias bizarras a comentar e tantos parecem ser (aqui segundo Xexéo) os assessores de celebridades dispostos a divulgá-las. O problema é quando Joaquim pretende alcançar uma altura minimamente mais séria, quando pretende sugerir em notinha algo um pouco mais discutível.
Foi o que Joaquim tento fazer nessa quinta-feira que passou, na notinha que segue na íntegra:

"A GEOGRAFIA PIROU
O filme 'Ainda não sei o que você fez no verão passado" passava no Universal Channel, 0 43 da Net, quando uma personagem da trama recebe telefonema de uma rádio com a pergunta 'Qual é a capital do Brasil'. A moça pega um saco de café, lê o invólucro e responde vibrando que 'Rio é a capital do Brasil'. Vibrando mais ainda, o locutor diz que ela acertou e acabou de ganhar uma passagem para as Bahamas. Esses americanos não decepcionam quando a matéria é geografia"

Diante do absurdo, escrevi o seguinte e cordial e-mail, também reproduzido na íntegra aqui:

"Joaquim,
Você errou feio em nota desta quinta-feira. O filme do Universal Channel ao qual se refere é "Eu ainda sei o que vocês fizeram no verão passado", seqüência de "Eu sei o que vocês fizeram no versão passado" - e não "Ainda não sei o que vocês fizeram no verão passado", como você escreveu.

Além desse erro menor, a nota toda se baseia em um equívoco: tivesse visto mais um pouco do filme - realmente um sacrifício, o filme é ruim mesmo para um fã de terror como eu - perceberia que o dito telefonema da rádio foi um trote montado pelo psicopata do filme para atrair a personagem principal a uma ilha, na qual ele pretendia matá-la. O trote é descoberto pela personagem exatamente quando - já fugindo do psicopata - ela acha um globo terrestre no saguão do hotel da ilha em que se hospeda e confere que a capital do Brasil é... Brasília. Ou seja, o psicopata aceitou "Rio de Janeiro" apenas porque queria vê-la na ilha de qualquer jeito.
Um abraço,
Felipe Svaluto Paúl"

Enviada para o e-mail citado no rodapé da coluna, essa mensagem deve ter chegado ao seu destinatário. Apesar disso, não houve qualquer comentário a respeito nas colunas de ontem e de hoje.
Retomando o início desse texto, o leitor pode estar se perguntando: "Felipe, o que há de relevante nisso? Não seria melhor escrever sobre a crise na PMERJ?" Respondo ao caro leitor: seria e é mais relevante, e é exatamente isso que estou fazendo, estou escrevendo sobre a crise na PMERJ, ou ao menos sobre aspecto que já é fundamental em todo o processo - a leviandade com a qual nossos profissionais de jornalismo escrevem coisas. O exemplo do Joaquim, que trata de tema tão diferente, é significativo: como digo em meu e-mail, bastaria ter assistido mais um tanto do filme - ok, mais da metade dele - para que o jornalista recebesse a confirmação daquilo que qualquer espectador médio brasileiro imaginou quando da ligação para a personagem, que a coisa toda se tratava de um trote. Joaquim - ou alguém da sua equipe - não apenas foi enganado pelo truque bobo do horrendo filme, mas o usou em notinha tentando ajudar a confirmar aquilo que é crença absoluta em quinze entre dez representantes da sua espécie, o esquerdista-caviar zonasulense: que os americanos são uns caipiras ignorantes que desconhecem absolutamente o mundo para além do Rio Grande, sua História e Geografia. Nunca se soube ao certo a que eles opõem essa ignorância especial, já que qualquer visita à Europa - para além dos redutos intelectuais e descolados que eles talvez freqüentem - mostrará exatamente a mesma coisa, ou seja, padeiros franceses considerarão em massa que a capital do Brasil é o Rio, e não Brasília; eu mesmo tive experiência com isso, entre meus parentes italianos, em sua maioria pessoas bem mais velhas e com pouco estudo, todos obviamente se surpreenderam diante desse dado que para nós é tão evidente. Mas a soma de caipirice carioca - uma caipirice que realmente afeta cosmopolitismo; viva Evaldo! - com nosso antiamericanismo fundamental resultou em uma crônica estabanada e, acima de tudo, leviana.
Mas que tem isso a ver com a crise da PMERJ, afinal? Tudo, caros. A crise da PMERJ vem repercutindo em uma imprensa acostumada exatamente a essa leviandade, ao "passar de olhos" - do Joaquim no Universal Channel - ou do "ouvir dizer" - de um colaborador do Joaquim, que passou a informação ao jornalista supostamente responsável, que não a conferiu. A leviandade com a qual a nossa mídia trata de assuntos sérios - sim, pois o filme é tosco, mas discutir os conhecimentos educacionais dos americanos é coisa séria, parte fundamental do nosso antiamericanismo - é bizarra, reflexo ainda da falta de profissionalismo e de uma mídia excessivamente galhofeira, de botequim, alimentada no Rio pela velha tradição da esquerda-etílica, prima bebum da esquerda-caviar. Enquanto é para ironizar celebridades, isso serve muito bem; mas quando é para informar qualquer coisa minimamente relevante, tenha sempre os pés atrás - não para se proteger dos "jornalões de direita", como acusam os conspiracionistas da esquerda, mas sim para se proteger da velha e fundamental incompetência.
E lembre sempre do adágio universitário que colabora com o título desse texto: o jornalista é, fundamentalmente, um ser que não é especialista em nada - mas que tem o reconhecimento social que lhe permite falar sobre tudo. E da forma mais porca possível.
Felipe Svaluto Paúl(Isquindô!)

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terça-feira, janeiro 08, 2008

O OICULT e a Contracultura na UFF - uma tragédia em cinco atos

No dia 19 de dezembro de 2007, foi lançada na Universidade Federal Fluminense a revista virtual Contracultura, um projeto do Laboratório (reconhecido como tal pelo CNPq) OICULT, abreviação para Observatório da Indústria Cultural. Esse Laboratório tem sua criação devida à professora Adriana Facina, integrante do corpo docente do departamento de História da UFF.

Outro integrante do corpo editorial da Contracultura é Mardonio Barros - segundo o orkut*, namorado (ou esposo, a depender da interpretação) da professora Facina. Mardonio e Facina são co-autores de um dos textos publicados no primeiro número da revista, a peça "Tropa de Elite ou Matou na Favela e foi ao cinema". A professora Facina parece ter achado essa publicação relevante o suficiente para incluí-la em seu Currículo Lattes. Há professores vários - com produção intelectual mais volumosa ou menos interesse em engordar currículos - que deixam passar esse tipo de coisa; mas podemos entender que há quem realmente precise incluir em seu Currículo Lattes um texto escrito com o namorado para uma revista virtual que tem como editores exatamente a própria autora do texto e esse namorado. Talvez esteja apenas me faltando romantismo e a coisa seja nada mais que o fruto do inocente desejo de mostrar para toda a Academia a força da paixão que une os colaboradores intelectuais. Talvez.

O primeiro número da revista Contracultura traz ainda o texto "Sandwich ou sanduíche? Eis a questão", publicado na seção Sabores Populares. O texto é de autoria de Giulia Facina, também conhecida como a filha adolescente da professora Adriana. Giulia Facina tem 13 anos e não, ainda não faz parte do Corpo Editorial da Contracultura. Como também não chegou ainda à Academia, não pode incluir esse texto aprovado pela própria mãe em seu Currículo Lattes. Pena.

A revista Contracultura é hospedada no site da Universidade Federal Fluminense. Desejoso de saber o quanto de dinheiro público há na ação em família, pedi a um amigo que simulasse ser um interessado na publicação e enviasse e-mail à revista. A resposta - também em co-autoria: nos chegou assinada por Facina mãe e Mardonio - é a que segue:

Olá Fabiano,
Que bom que você apreciou a revista. Por enquanto, ainda não temos o objetivo de publicá-la em papel, pois não temos nenhum financiamento. Ela é toda feita na base da militância mesmo. O ISSN está em processo e devemos obtê-lo em breve. Se você se interessar, podemos mantê-lo informado sobre as atividades do Observatório da Indústria Cultural ( http://oicult.blogspot.com/), que é o espaço que articula a revista, entre outras iniciativas.
Um abraço,
Adriana Facina e Mardonio Barros

O caráter transitório dessa desagradável situação é evidenciado e reiterado na prosa algo tortuosa e redundante: "Por enquanto, ainda não temos o objetivo de publicá-la em papel, pois não temos nenhum financiamento". "Por enquanto, ainda": a possibilidade de fazer a revista circular em papel não é negada, pelo contrário - é condicionada à obtenção de algum financiamento.

Ficam as perguntas: caso venha a ser publicada em papel e com financiamento público, o contribuinte passará a pagar pelas receitas da teenager Giulia Facina? A revista continuará publicando - agora com o dinheiro do contribuinte - textos de dois dos seus editores? O pagador de impostos brasileiro passará a financiar o nepotismo contracultural? Ou a revista será subitamente acometida pela seriedade que falta à sua versão virtual?

Só podemos fazer suposições sobre essas questões. Mas podemos recolher mais alguns indícios que ajudem a orientar as nossas especulações.

* - No intervalo entre a escrita e a publicação desse texto, a professora Facina restringiu aos amigos o acesso a suas fotos no orkut. Apesar disso, o "married" continua exposto no perfil - e Mardonio continua listado como uma das paixões da profesora, acompanhado apenas por Giulia Facina.

***

Como dito acima, a revista Contracultura é um projeto do Observatório da Indústria Cultural, Laboratório de pesquisa reconhecido pelo CNPq. O popular OICULT tem um blog. Sem querer analisar aqui a qualidade dos artigos nele publicados, acho interessante destacarmos um dos posts mais recentes do site: o texto "Resistência Civil: a instrumentalização clandestina para não ficar tão fora do mundo". O texto é pouco mais do que uma apologia explícita do roubo de energia elétrica (o popular "gato") e do usufruto ilegal e clandestino de tv a cabo - como diz o próprio autor, "o famoso gato-net". Vejam vocês mesmos. Reproduzo abaixo apenas dois trechos:

"Mas nem tudo está perdido. Existem meios de se conseguir certos serviços que nos são negados pela falta de capital. Em épocas de Tropa de Elite, podemos observar um tipo de acesso àquilo que sendo a princípio para poucos se torna de todos, socializado: a PIRATARIA. Tem que ser na base do extra-oficial, não dá pra se prejudicar pela falta de condições. Isso é INJUSTIÇA. Da mesma forma que é muito fácil usufruir dos mesmos privilégios de quem pode ter uma televisão de qualidade. É só fazer um gato, o famoso gato-net."

"Assim, tenho uma opinião bem definida: viva o gato e a pirataria, como forma de protesto, adequação e libertação! Para quem não tem dinheiro é isso, ou se contente em permanecer fora do mundo."

Não existe outra expressão para isso que não "apologia ao crime". O texto não é sequer uma discussão teórica sobre meios de comunicação, concessão de canais abertos ou direitos de propriedade intelectual. É um elogio explícito de práticas criminosas estabelecidas. Pois é isso: o OICULT - digo novamente: um Laboratório acadêmico de pesquisas, reconhecido pelo CNPq - abriga em seu blog um texto que faz descarada apologia ao crime.

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Mas se há algo que não podemos dizer é que esse texto destoa do comportamento da idealizadora do OICULT. No começo do segundo semestre de 2007, a professora Adriana Facina exibiu em uma sala de aula da UFF uma cópia pirata do filme Tropa de Elite. Não recorreu a qualquer desculpa educacional para justificar sua ação; meramente disse que o filme foi vazado intencionalmente. Como observamos, uma suposição dessas já é suficiente para que uma professora doutora use as instalações da UFF - o dinheiro público, meus caros, o dinheiro público - para exibir um filme que sequer havia sido lançado oficialmente. Um filme pirata.

E sim, há testemunhas.

***

Sandwich, apologia ao crime, filme pirata... Como posso fechar a narrativa superficial desses gloriosos primeiros meses de OICULT, um laboratório reconhecido pelo CNPq? Com um chamado à revolução, evidentemente! O lançamento da revista Contracultura contou com a presença do rapper "Gas-pra", divulgando seu CD Temeremos mais a miséria do que a morte. Fui pesquisar sobre o rapaz e achei entrevista reveladora. Merece ser lida com calma, mas novamente facilito a vida de vocês e destaco o trecho que mais nos interessa. Seguem pergunta e resposta:

"No CD você fala em "Bonde da Revolução". Você acredita que só uma revolução resolveria os problemas do país? Essa revolução seria armada?
Gas-PA: Eu não acredito que vamos acabar com a pobreza pedindo ajuda aos ricos. Aliás, o problema do Brasil não é a pobreza. É a riqueza nas mãos de um pouquinho só de gente. E esse grupelho não vai largar o osso na base da conversa. Então, que cada rebelde se arme com, como digo na música, as armas que sabe usar."

Pois é. O grupelho, meus senhores, não vai largar o osso na base da conversa. O rapper não diz ao entrevistador que rejeita a luta armada; diz que cada rebelde deve se armar com as armas que sabe usar - talvez a música, a poesia, o hip-hop... Talvez armas de fogo, por que não? Como vimos, ele não negou isso. Afinal, alguém vai ter que tirar o osso do grupelho - e não vai ser "na base da conversa".

Foi esse um dos convidados para o lançamento da revista Contracultura. Foi esse um dos convidados do OICULT, um Laboratório de pesquisa acadêmica - e só mais uma vez, para ninguém esquecer: reconhecido pelo CNPq. Um Laboratório coordenado por uma professora doutora de uma universidade federal brasileira.

***

O último ato ainda está por vir. Dependerá das reações - das reações de vocês principalmente, das reações de todos os leitores - ao que foi divulgado aqui. Quem me lê com alguma freqüência percebeu que fugi o mais que pude do meu estilo habitual - e isso não foi por acaso. A intenção aqui foi apenas contextualizar uma ou outra coisa e deixar que as pessoas falassem por elas mesmas sempre que possível - produzir um texto com informações, fundamentalmente. Algumas pequenas informações que ajudam a mostrar um mínimo do que é uma universidade pública brasileira. Algo será feito a partir desse texto? Dificilmente. Mas as informações estão aí. A minha parte foi feita - e continuará sendo feita, na medida do possível.

Afinal, é preciso que haja uma contracultura universitária nesse país.

Felipe Svaluto Paúl(pela revolução que merecemos - e que não é a deles)

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terça-feira, novembro 20, 2007

DOIS TEXTOS PUBLICADOS NA REVISTA "A RODA"

(Reproduzo abaixo dois textos meus originalmente publicados no número 5 da revista "A Roda" - publicação dos alunos do curso de graduação em História da UFF)

***

O QUE O LIBERALISMO NÃO É – COMENTÁRIOS A PARTIR DE FALA DO PROFESSOR CIRO CARDOSO

Na última edição dessa revista o professor Ciro Flammarion Cardoso foi perguntado, em entrevista, sobre o que de fato significariam os termos direita e esquerda. A pergunta não poderia ter sido mais abrangente: não se referia ao que seriam direita e esquerda hoje, esquerda e direita no Brasil, esquerda e direita quando da Revolução Francesa. Não; a pergunta pretendia uma resposta sobre os significados mesmos dessa divisão clássica do espectro político, sem atentar para uma especificidade temporal ou espacial. Já seria difícil responder pergunta dessas se ela fosse limitada por ao menos um dos marcos que apontei; aí ao menos seria possível refletirmos a partir de afirmações de determinados agentes históricos, sujeitos que identificavam a si mesmos como seguidores dessa ou daquela matiz esquerdista ou direitista – mas ainda assim a resposta seria no máximo parcial, capenga, mesmo vinda de alguém com a erudição notável do professor Ciro. Como foi colocada, a pergunta torna a resposta quase impossível, ainda que pergunta a resposta sejam sim mais do que pertinentes, ao menos pelo tanto de vezes em que nos pegamos pensando a respeito - e mais ainda pela importância fundamental que a divisão apresentada ainda assume nas práticas e discursos políticos, no curso de História, na UFF, no Brasil e em todo o mundo, a despeito de uma aparente diminuição nos debates propriamente ideológicos, em prol de consensos em torno de um suposto “centro” político pragmático e tecnicista. E foi baseado nesse entendimento que também é meu – a importância atual dessa discussão – que entrevistadores e entrevistado emitiram respectivamente a pergunta clássica e uma resposta possível. Não pretendo aqui entrar propriamente na discussão, embora lateralmente ela vá sim aparecer; meu interesse é partir de algumas afirmações do professor para dizer o que uma determinada doutrina política – o liberalismo – não é. Ciro falou como um marxista renomado; eu falarei como um liberal em formação. Peço desde já perdão ao professor – e aos luminares da filosofia política, liberais inclusive – por qualquer falha decorrente de minhas próprias limitações e lacunas. Faço um esforço que é político mais do que científico; seria preferível que pessoa mais qualificada o fizesse – ocupo esse espaço apenas porque esse hipotético sujeito liberal ainda não se mostrou disposto a escrever para nossa revista.

Primeira questão, a explicação mesma do meu texto: o liberalismo é de direita ou de esquerda? Ele é de direita, de esquerda e também muito pelo contrário. É interessante como o próprio professor Ciro parece entender essa peculiaridade do liberalismo quando diz “(...) O típico da direita é exatamente o contrário, por isso seus membros são chamados de conservadores”. O professor não inclui os liberais entre os direitistas, ao menos não aí – será apenas mais adiante que equiparará o neoconservadorismo e o neoliberalismo como expressões ideológicas de uma nova direita. A posição do professor se coaduna com a leitura marxista: filho mais velho da modernidade, o liberalismo seria uma força progressista ou reacionária de acordo com as estruturas que combate, de acordo com a classe a qual se opõe – o liberalismo teria sido progressista ao combater os privilégios feudais, o Antigo Regime, o Estado não-laico, a servidão; seria reacionário ao sustentar a exploração do homem pelo homem, rejeitar ações governamentais tidas como socializantes, insistir em uma meritocracia regulada pelo mercado etc. Não é preciso dizer o quanto tais concepções podem variar em experiências históricas concretas – no Brasil Império poderiam ser identificados dois liberalismos, um reacionário e direitista e outro progressista e esquerdista; um mesmo liberal no Brasil contemporâneo poderia aparecer como esquerdista ao defender a legalização das drogas e como direitista ao discursar em prol da privatização dessa ou daquela estatal... Os exemplos não faltam à mente do estudante de História experimentado. Mesmo os liberais assumem diferentes posições quanto à questão: há os que se consideram direitistas, há os que se dizem esquerdistas – poucos hoje, principalmente no Brasil – e mesmo aqueles que, seguindo Hayek, pretendem uma transcendência da doutrina sobre essa questão, preferindo opor o liberalismo a duas formas de estatismo, mesmo a duas formas de socialismo para alguns – a forma conservadora e a forma comunista. O terreno é árido e não entrarei nele para além desse mapeamento muito sucinto. O que me importa aqui – e o que motivou esse meu texto – é demonstrar como o liberalismo se relaciona com determinadas características que o professor Ciro atribuiu à direita – considerando que é nesse campo que os marxistas e a esquerda em geral costumam situar o liberalismo e os liberais contemporâneos.

A argumentação do professor se centra em dois pontos, em duas visões que ele atribui à direita: ela teria uma certa visão de natureza humana e – aparentemente como derivado disso – uma certa visão de sociedade. O homem naturalmente tenderia a buscar “propriedade privada, status e poder” e tenderia também a naturalizar uma lógica social que supostamente se fundamentasse sobre essas características. Essa conformação social só poderia ser melhorada, jamais revolucionada a ponto de perder essas características em prol de um igualitarismo. Aqui é preciso que nos perguntemos: o liberalismo se encaixa nessa definição? Sendo o liberalismo tantas coisas, podemos dizer também que se encaixa e não se encaixa ao mesmo tempo. Há sim liberais que continuam partindo da premissa da existência de uma natureza humana, agora assentados menos numa suposta ordem divina ou em direitos naturais e mais em descobertas da biologia, da psicologia evolutiva, das ciências da cognição etc. Mas é preciso atentar que isso justifica liberalismos os mais diferentes – desde aquele que se baseará nisso para naturalizar, sim, “a competição” até um que identificará uma natureza humana essencialmente negativa e mesmo predatória, o que justificaria um Estado o mais limitado possível – no qual os detentores do poder, sempre tendendo à corrupção e ao arbítrio, pudessem prejudicar o mínimo possível os outros seres humanos. Não são todos os liberais – nem uma maioria deles – que identificarão nessas características um corolário que justifique a nossa atual sociedade. Aliás, o que os liberais mais derivam dessas visões sobre a natureza humana é exatamente que a atual sociedade é antinatural, posto que estatista – temos aí um liberalismo profundamente revolucionário, cuja expressão mais radical reside no libertarianismo anarco-capitalista americano, que proporá a simples abolição completa do Estado, a ser substituído pelo mercado como ente fundamental – em alguns casos único – da regulação do social. Apesar de não chegar a esse radicalismo, acho possível sim dizer que o que convencionamos chamar de neoliberalismo se aproxima dessa visão – há algo mais revolucionário na França do que pretender abolir uma verdadeira instituição nacional, a jornada de trabalho das 35 horas semanais? Há algo mais revolucionário na Europa do que pretender demolir – e não apenas reformar, como quis e quer a Terceira Via – um “estado de bem-estar social” quase cinquentão? Para além disso, há sim liberais que não partem em absoluto da existência de uma natureza humana – e nem por isso deixam de atentar para os diferentes problemas que mudanças bruscas (revolucionárias principalmente) trouxeram e ainda trazem para o social. Criticar o Terror da Revolução Francesa como algo inerente a um processo revolucionário que combinou uma massa faminta e utopistas de gabinete é mais uma lição da História que da Biologia. Aí a esquerda é que parece ainda trazer com ela uma natureza humana rousseauniana: basta chamar os bons selvagens à luta e eles farão o que deve ser feito, destruindo tudo e construindo sobre isso o novo. As pilhas de cadáveres dessa visão só começaram a ser construídas pelas guilhotinas: os países comunistas do século XX seriam pródigos na produção dessas “vítimas da História”.

Relativizadas as posições do liberalismo sobre a natureza humana e os corolários possíveis delas, apresentada a saudável – literalmente falando – resistência de tantos liberais a engenharias sociais conduzidas por intelectuais iluminados, cabe ainda um comentário rápido sobre afirmação do professor Ciro sobre uma certa direita contemporânea: diz o professor que “(...) O que há é um avanço muito grande da direita, que já não tem medo de dizer, por exemplo, que o mercado é muito mais importante que a democracia(...)”. A afirmação merece ser relativizada, ao menos pelo peso negativo que a palavra “mercado” tem nos círculos dos leitores dessa nossa revista. O que os liberais dizem é que a democracia não pode ser confundida com democratismo; não é tudo que se torna moralmente legítimo apenas por contar com a aprovação do grosso da população. Há coisas que não devem nem podem ser sequer submetidas ao escrutínio das massas; não há sentido em um referendo sobre exterminar ou não todos os judeus – ou negros, ou homossexuais, ou marxistas. Menos sentido ainda há quando uma certa elite política se arvora no direito – sustentada por um autoritarismo – de realizar extermínio desses grupos em nome de massas que supostamente clamariam pela limpeza. Da mesma forma, direitos como o de livre expressão de idéias, de liberdade religiosa, de liberdade de associação política, de trânsito etc. são direitos inalienáveis e morais em si mesmos; evidentemente, um governo pode restringi-los – ou mesmo cerceá-los totalmente – e fazer isso em nome das massas, e em alguns momentos pode até mesmo contar de fato com a aprovação dessas massas. Mas não será isso que tirará o caráter criminoso da coisa, por mais que a legislação tenha tornado a prática correta e por mais socialmente aceitável que ela seja. E é aí que entra o mercado: em diferentes graus, os liberais preferem – baseados em argumentos históricos, econômicos, sociológicos – o mercado ao Estado como garantidor dessas liberdades fundamentais. Há um temor historicamente justificado de que as massas são levadas – muitas vezes exatamente em nome da democracia – a sustentarem toda sorte de ataques a esses direitos. Ditaduras várias – de direita e de esquerda – já nos mostraram o quanto as massas podem apoiar enfaticamente toda sorte de restrições às liberdades e mesmo coisas como tortura e assassinatos sistemáticos de opositores políticos. O liberalismo – a doutrina que garante a todo opositor o direito de expressar-se – tem razões mais do que justificadas para temer a democracia, portanto; o que não significa que pretende vê-la subordinada ao mercado. A maioria dos liberais – eu inclusive – rejeitam o mercadismo máximo do anarco-capitalismo e pretendem ver na prática o que em tese já é garantido pela maioria dos Estados ocidentais, ou seja, a proteção desses direitos fundamentais exatamente dentro dos marcos do Estado e da democracia.

Quando pretendemos discutir coisas desse porte em tão poucos parágrafos é inevitável que tenhamos lacunas várias; tenho certeza que o professor Ciro se deparou com o mesmo problema na entrevista que concedeu, em grau até maior. Estou à disposição para esclarecer a quem quer que seja – na medida de minhas possibilidades – um pouco mais sobre o que coloquei acima. O liberalismo é um projeto civilizacional que, longe de superado, é atualíssimo e viu o sangrento século XX confirmar tantas de suas idéias políticas e econômicas. O século XXI será o século do liberalismo ou será mais um século de barbárie. Conto com todos vocês para a construção diária da sociedade aberta.

Felipe Svaluto Paúl

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UM PROFESSOR DA UFF PODE ENTRAR EM GREVE?

Uma introdução se faz necessária antes de considerarmos a questão da greve em si: é preciso identificarmos no que um funcionário público difere de um funcionário de empresa privada. A diferença fundamental é a seguinte: um funcionário de empresa privada opera sujeito a determinadas circunstâncias de mercado que não afetam em absoluto o servidor público – enquanto servidor, obviamente não enquanto consumidor. Que isso significa? Significa que os vencimentos de um funcionário de empresa privada serão definidos de acordo com uma série de variáveis inseridas na lógica de mercado: ele ganhará um salário tal que ao mesmo tempo permita determinado lucro ao patrão que o emprega e estimule esse funcionário a permanecer naquele emprego e não optar por outro; essa possibilidade de optar por outro emprego está mais ou menos aberta de acordo não apenas com as habilidades e formação educacional do empregado, mas também de acordo com a situação presente do mercado de trabalho, que habilidade é valorada positivamente, quantos indivíduos a possuem, quantos estão interessados naquele emprego possível; o patrão desse empregado terá mais ou menos interesse em mantê-lo nos quadros da empresa também segundo a situação presente do mercado: o quanto aquele funcionário é um diferencial na composição do valor de certo produto ou serviço, o quão ruim seria perdê-lo para concorrente; ainda será preciso considerar – e isso deve ser considerado por patrão e empregado – a demanda atual e as perspectivas de demanda futura para aquele produto ou serviço, o quanto a empresa lucra e pode vir a lucrar, pois uma demanda maior ou menor pode permitir ou dificultar uma maior valoração do trabalho desse nosso empregado. Essas e várias outras variáveis compõem a complexa e mutável equação que define o lugar ocupado por cada um no mercado de trabalho – e o grau de subjetivismo e a importância de fatores como sorte e rede pessoal de relacionamentos dificultam qualquer matematização mais clara dessa equação. Em suma: mesmo em uma sociedade com o mercado de trabalho ainda bastante regulado pelo Estado – como é o caso da sociedade brasileira – a situação do funcionário de uma empresa privada é sempre marcada pela dúvida, pela inconstância, pela possibilidade de se ver desempregado devido a uma mudança em uma dessas tantas variáveis arroladas, muitas das quais escapam em absoluto ao controle dele. Em oposição a isso, o emprego público se caracteriza pela estabilidade. Não é o mercado o definidor da importância daquele serviço oferecido: é a política. Instâncias políticas definiram que tal ou qual serviço é importante por essa ou aquela razão; o Estado considera – como somos uma democracia essa consideração em tese passou e passa o tempo todo pelo crivo das urnas – que é importante que existam universidades estatais, que atenderão a tal público e de tal forma. Para essa universidade serão contratados funcionários cujos vencimentos e condições de trabalho serão também definidos pela política: não serão os beneficiários daquele serviço que dirão através da compra o quanto valoram o produto oferecido, mas sim instâncias políticas, que valorarão menos ou mais esse serviço de acordo com pressões também políticas, exercidas por grupos organizados ou agentes individuais. O resultado disso é simples: enquanto o salário de um padeiro é definido em parte pelas pessoas que compram pão e por aquelas que gostariam de comprar, essa consideração inexiste na lógica do serviço público; o salário de um professor da UFF apenas muito lateralmente – e idealmente – está referido ao valor que a sociedade confere a esse professor, o que seria checado apenas através do processo eleitoral e de mobilizações em prol da redução ou do acréscimo desse salário. O professor da UFF compra pão e influi no salário do nosso hipotético padeiro; mas o padeiro não estudou na UFF, não tem filho que estuda e não considera em absoluto uma pesquisa histórica qualquer como importante para a vida dele. Isso significa mais do que o pagamento por um serviço que não se utiliza e não se considera como essencial ou mesmo importante; significa que o salário de um professor da UFF está relacionado mais à importância que esse professor se auto-atribui e ao quanto estará disposto a fazer essa importância valer politicamente (e o quanto políticos e burocratas considerarão que vale a pena politicamente atendê-lo) do que referido a um mecanismo de valoração dinâmico e cotidiano que funciona a partir dos usuários atuais ou em potencial do serviço oferecido. Podemos dizer o mesmo para as condições sob as quais trabalha, das horas trabalhadas ao material disponibilizado para ele – passando pelas possibilidades de sofrer qualquer coisa em decorrência de um trabalho valorado negativamente.

É essa condição e seus corolários que tornam absurda qualquer greve de professores na UFF ou qualquer outra universidade estatal brasileira. Esses professores optaram claramente por um regime de trabalho regulado por instâncias outras que não aquela cuja lógica - fundamentalmente, como já dito; o mercado brasileiro é muito regulado politicamente ainda - rege a esmagadora maioria das relações trabalhistas no país. Existem professores com formação equivalente submetidos a esse outro regulador; mudar de regulador é possibilidade aberta a todos os docentes uffianos. Se não mudam é porque identificam melhores condições na universidade estatal, condições que vão desde a possibilidade de pesquisarem mais intensamente – pesquisas também submetidas a uma regulação política, aprovadas por instâncias político-acadêmicas sem qualquer questionamento sério sobre o interesse real do nosso hipotético padeiro nelas – até (e como há uffianos gozando felizes dessa condição!) a impossibilidade quase absoluta de serem demitidos, por mais porcos que venham a ser os serviços oferecidos. Todo e qualquer aumento de salário – que não uma mera reposição de perdas decorrentes de inflação – será apenas uma negociação entre dois agentes políticos, um dos quais é exatamente aquele que pretende ver seu trabalho melhor valorado – e ambos discutem essa valoração com dinheiro alheio, o do contribuinte. O povo cuja opinião se ignora – os nossos compradores de pãezinhos – cunhou há sabe-se lá quanto tempo o adágio célebre: a porta é a serventia da casa. Quem não estiver satisfeito com as “terríveis” condições atuais de trabalho tem o direito de tentar a sorte sob o regulador empregatício mais generalizado. Quem se habilita?

Felipe Svaluto Paúl


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